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SOBRE AS SUPERFÍCIES DO QUE FAÇO

 

 

A trajetória que pretendo adotar para esta reflexão é cronológica, tendo como base três etapas do meu trabalho condensadas em três exposições: Vazio/Cheio, Frigo e Granel.

Antes de destrinchar as entranhas do que tem sido feito, considero este trabalho muito importante como um mergulho no meu trabalho, com o objeto de apreender o que foi concebido ao longo da trajetória de criação, - que aconteceu com atenção pouco voltada às questões originais e focada mais na execução em si. Assim, o início de cada um dos três capítulos principais deste texto, trará parágrafos sobre a essência do que escrevi ou escreveram sobre minha produção, seguidos de reflexões surgidas durante o curso e que levantaram mais questões que respostas.

Este trabalho toma para si então, o aspecto de registro inicial, fonte futura da construção de hipóteses e questionamentos mais consistentes. Fala mais da intenção do autor que daquilo que se pressente na obra, tentando fazer mais evidentes – principalmente para mim - minhas motivações, num reconhecimento de que o momento é de descoberta do meu próprio trabalho.

 

ABORDAGENS



1 - Da idéia de corpo com as obras que compõem a exposição Vazio/Cheio, fase inicial e essência daquilo que perpassou toda a produção até agora. Este capítulo adota um cunho intimista, assumindo e assimilando todas as referencias artísticas, bibliográficas e práticas sobre corpo como construção pessoal. É uma necessidade específica de reconhecimento desse símbolo e de posicionamento do artista diante de sua obra;

2 - Da discussão sobre “espaço” onde os corpos se apresentam, a partir dos trabalhos da exposição Frigo - já que durante a execução desse conjunto ele, o espaço, assumiu sua importância na medida da consciência de sua força na composição. Sobre isso, há que se discutir o que ele representa e como se articula como tal, buscando aquilo que me aproximou de alguma estrutura de representação – construção ou desconstrução - do lugar da figura, e fontes que vêm auxiliando em algumas questões sobre o tema;



3 - Da emergência de um dialogo importante e mais consciente entre corpo e espaço, estes dois se assumido como elementos de outra situação com as obras de Granel.


A FIGURA HUMANA



“Olhamos desenhos, mas percebemos uma atmosfera que pulsa a nossa volta e dentro de nós metáforas alusivas ao que temos e ao que nos falta. Ao vazio e ao cheio.” (Amanda Lopes, 2008)

Com o tempo, estabeleci uma relação estreita e simbólica entre a conformação física e a realização como pessoa no mundo. Encontro na alegação do filósofo espanhol Julián Marías a confirmação da convicção de que o corpo é uma sombra daquilo que é a minha concepção de mundo, um conjunto de modos de experiência e idealizações, traduzido em formas e nuances que falam do mundo criado por cada um para si mesmo. Me aceito como forma quando me movo e interajo com as imagens que crio.
Partindo de racionalizações do que é possível, posso dizer que esta é a minha base criadora.

Em Cheio/Vazio, produzi trabalhos com o objetivo de criar formas que, ao invés de comunicarem significados, pudessem recebê-los. No momento em que escrevo isto, tenho a impressão de que uma e outra estratégias são a mesma coisa.
Cabe dizer que tentei retirar das figuras desenhadas todo tipo de significação advinda da idéia de “presença” sem retirar a interação da forma com seu meio, aproximando-as mais da sua constituição material e alijando-as da “persona”. Recordo aqui que não estabeleço vínculo direto entre minhas intenções e o resultado obtido. Há então uma busca interna de representar essencialmente corpos, figuras puras, sem adereço e sem nenhum valor reconhecível de ética ou moral, embora recentemente tenha reconhecido que estes valores são atribuídos por aquele que vê e não por quem cria. O simples fato de denominá-los corpos e de serem corpos reconhecíveis nos seus detalhes – que o desenho consegue explicitar, potencializar mais que a realidade palpável dos deles mesmos - já impõe barreiras ao intento.

Minha motivação está no jogo de tentar anular através de soluções formais a estas forças, num suposto desnudamento que não permita julgamentos.
Articulo estas intenções através de elementos como a tensão na apatia, a sutilização do movimento até a inércia – até transformá-lo em sensação - e a transposição da responsabilidade da vida do ser para um nível mais abstrato e não dele mesmo como objeto representado, a latência do nada em tudo e, no fim, a carne simplesmente. A temática, de modo geral, é a ausência da pessoa na pessoa. É notável nesta fase, a ausência do olhar e de qualquer expressão nas figuras desenhadas.
Suspeito que o propulsor desse intento seja uma necessidade pessoal de criar receptáculos para significações que não se oferecem na suposta realidade.



“O mundo é decepcionante. O ser entregue à razão encontra força na solidão. É por isso nos fazemos artistas. E produzimos obras que consistem em levantar enganos nos quais a suposta realidade, enredada, torna-se ingênua. Tornamo-nos “senhores de coisas” plasmando-as numa imobilidade intensa.“ (Miguel Gontijo, 2010)



A origem disso pode ser ao mesmo tempo pessoal e social, motivada pelo esforço de adaptação a uma realidade cada vez mais fantasiosa e truncada, resultando na sensação de ocupação do próprio corpo por uma personalidade fabricada, vazia e impessoal. Uma forma que, por sua poética se denomina corpo.

Em sentido contrário, o esforço físico e a quantidade de horas gastas na execução, imprimem nos corpos desenhados, uma carga de motivações, intenções e signos que lhes dão a “presença” cuja falta motiva sua execução. É provável que eu encontre nas figuras desenhadas a veracidade que signifique a vida, validando uma postura diante das coisas.

Ao primeiro olhar, as intenções de vida e morte me parecem claras nas figuras. Creio que este é o nível mais superficial das figuras desenhadas. Esta dubiedade evidente tenta evitar que a leitura da imagem se estenda à simples narrativa ou à inferência ampla de outros valores, talvez culturais ou de espécie. Pode-se inclusive sugerir que há aí uma tentativa de direcionamento sutil da leitura, sem objetivar necessariamente algo. Tenta ser também uma estratégia de colocar aquele que vê, no dilema.

Neste conjunto a grafite é a matéria essencial, porque sua leitura é tácita, seu resultado permite que o olhar vá além para chegar aos signos. Na escolha desse material, influi a atração causada pelo desafio de esgotar as suas possibilidades, num misto de necessidade de investigação e vaidade. Isto é uma constante. O jogo de traduzir sua textura a reações sensíveis me entretém enquanto o desenho acontece, bem como a dança oferecida pelo hiper-realismo, na ambigüidade entre realidade e mentira, definições que a contemporaneidade e suas linguagens trataram de amalgamar.



“Figuras fractais silenciosas, anestesiadas... Parecem não responder a nenhum estímulo externo porque já não lhes resta nada de interior (...) Seus corpos são meros receptáculos do nada. Assemelham-se aos próprios recipientes vazios em que se encontram.(...) Ao mesmo tempo que não possuem o calor da vida, demonstram uma reação perturbadora que não é própria da morte física, mas da morte sensível, espiritual, expressa pela consciência.” (Amanda Lopes, 2008)



Tentei reconhecer a origem e significâncias do corpo no meu trabalho. Nuances de sexo, desejo, morte, fascinação, medo e afeto querem definir as sensações que consigo denominar, sem abarcar a sensação completa de nenhuma delas através da palavra ou, pelo contrario, reconhecer na palavra seu significado mais abrangente. Tomei o cuidado de enumerar acima elementos sensíveis que, creio, atravessam o meu desenho, como comunicação mais pura entre mim e o espectador: coisas que aquele que vê, também pode pressentir.

Quero estabelecer relações que devem parecer mais particulares que propriamente processuais, se podemos separar estas duas questões.
O caminho da descoberta então, se delineará na definição dentro da minha produção, destes termos citados - meus significados particulares -, para assim encontrar a mais fiel ou aproximada sensação do corpo para mim.
Uso de reflexões alheias que por vezes valeram e valem para mim como leituras que eu mesmo faria - se tivesse tal clareza -, sobre meu trabalho e os símbolos/signos que uso.

As fontes dessas pessoas impessoais são diversas: desde sonhos – as realidades sugeridas nos trabalhos sempre resultam em oníricas sem serem surreais, porque quero crer que são possíveis pela sensação – à memória e a fotografia, adotada como método principal de construção da imagem, em substituição aos esboços e rascunhos. As imagens fotografadas - nunca por outras pessoas – fazem da câmera o meu coletor de impressões, e do computador, o laboratório onde os fragmentos se tornam corpos surgidos de faltas. A figura se oferece no atrito das partes e o meu novo corpo busca ou cria uma realidade para adaptar-se.

Nestas figuras criadas, sob o olhar de quem as cria, estão impressos o medo e a certeza da finitude e paixão pelas trajetórias, como um romance subjecto. É possível tocar muitas outras linguagens como a literatura, a poesia, a música e o cinema nesse processo. Fotografia e cinema, principalmente este último alcançam internamente a intensidade das sensações traduzidas nos corpos desenhados.

ESPAÇOS


Frigo: S. m. F. red. De frigorífico (do Lat. Frigorificu) Fluido que afugenta o calor; câmara para manter frescas e em bom estado certas substâncias e alimentos.



“Os desenhos que Sérgio Vaz nos mostra são feitos de personagens sem referência, esvaziados de seus cenários, que lançam dúvidas radicais sobre o princípio da realidade. Os seres estão envolvidos numa intensa imobilidade e seus gestos e atitudes estão plasmados no espaço. São personagens que habitam numa dimensão metafísica. Num lugar onde as “coisas” sonham. “
(Miguel Gontijo, 2010)



Entendo como espaço, o tempo, o ar, a temperatura, a luz e tensão que envolvem o corpo representado, não excluindo este último como espaço.
Neste período, tomei consciência de que as figuras desenhadas falavam principalmente do lugar que as abrigava. Foi importante despertar nos trabalhos esta dimensão e perceber este diálogo silencioso, que acontecia enquanto me mantinha alheio. Envolvi-me na exploração desse novo lugar.

A principio, mero elemento de composição – mais por ingenuidade que por significação -, esse “ambiente” agora assume importância, a ponto de impulsionar-me à pesquisa.

A questão do espaço na composição é fonte de várias indagações ainda sem respostas para mim.  A primeira delas se instala em sua ausência. Ao pensar o trabalho e onde a figura se apresenta, desde o formato do suporte à distribuição das formas do cheio e do vazio na cor, este ambiente existe com elementos e formas que são mentalmente visíveis mas não representáveis porque não são gráficos. São lugares familiares ao imaginário pessoal e bem próximos do reconhecível, mas de organização simbólica e espacial incoerentes com a visualidade. É possível dizer – e talvez facilmente pressentido – que as figuras estão perfeitamente abrigadas por um entorno e um enredo. Entretanto, pode ser válido tanto o argumento de que o não representado seja resultado de um espaço a construir pela fruição, como o de que aquilo que se ausenta foi desconstruído. Uma terceira hipótese e a de que o lugar se perfaz pela própria figura / corpo representada e o espaço seja ela mesma, não separada de seu entorno. Esta afirmação se valida com maior intensidade em alguns trabalhos, se diluindo em outros e contribuindo para sua opacidade.

Para a hipótese de desconstrução, contribui o caminho da criação onde, em sua origem, a imagem surge relacionada a uma atmosfera de certa forma concreta e indissociável dela mesma, inclusive antes de ser executada. Mas não seria a ausência de representação dessa atmosfera o modo mais adequado de construí-la?

Creio ser necessário definir alguns termos chave nessa discussão: espaço, representação e imagem. Essas definições tentarão ser aquelas que servem especificamente à composição na minha produção.

Valem para a idéia de espaço definições mais gerais, como ambiente onde se encontra a figura, físico e de representação mais relacionada à trama e enredo, antes alegórico e traduzido posteriormente ao pictórico. Ainda que irreconhecível ou irrepresentável, existe como móveis, referencias de muros e paredes, cômodos, fluídos e objetos. Há uma arquitetura que possibilita abrigar o corpo que vai habitá-la. Esta arquitetura em parte se forma da profusão de imagens trazidas pelas partes fotográficas que compõem os corpos desenhados, de modo que a ordem de surgimento da figura e do ambiente é cambiante e profusa.

A representação desse espaço carrega em sua definição a resposta à questão mais complexa e que continua no campo da hipótese: representar consiste em construir com a figura e a partir dela o lugar das coisas e objetos ou, num processo inverso, subtraí-las? Esta questão pertence a principio ao campo da teoria da composição, podendo afetar o resultado plástico de futuras produções e inclusive sujeitar obras já executadas cuja estrutura visual permanece inalterada a novas abordagens em sua proposição em conseqüência de conclusões advindas do discurso.



“O artista produz um simulacro com plena consciência do jogo e do artifício, acrescentando na imagem real a sua falsa realidade. Ele nos engana, engatilha armadilhas, cria engodos para nos fazer encontrar através da ilusão positiva e vital das aparências. Só depois percebemos que fomos levados a uma terra de ninguém.” (Gontijo, 2010)

 

A imagem, que pode ser interpretada como o corpo desenhado, é melhor definida como espaço do corpo. Embora menos objetiva, esta interpretação cabe melhor ao que se propõem os elementos da obra e, inclusive, aceita a hipótese de que o corpo define o espaço/ambiente e que também o é e, neste caso, a representação encontra uma solução válida, pois o espaço do corpo é também o da representação, não mais com a mimese, considerando a subjetivação dos seus símbolos visíveis ou não e buscando-se mais a sugestão que a descrição, embora haja o trabalho minucioso na busca do detalhe dos elementos visíveis – que considero como atividade de descoberta daquilo que se representa.

Na elaboração de cada peça, sinto a necessidade de reposicionar o corpo inventado, procurando a forma exata de ele ocupar o suporte, e comunicar de forma mais ampla o espaço onde ele passa a viver. Por vezes é perceptível uma maior preocupação com as formas que surgem, circundando ou calando com vazios a figura desenhada e em outras, figuras recorrentes cobram para si lugares específicos - estas, parte da história pessoal tornadas signos, contam com certa autonomia de organização dentro do suporte. Há um repertório de signos em forma de vazios.
Em algumas ocasiões, a figura desenhada não prescinde de qualquer ambientação mais complexa. Carrega em si as memórias, ambiências e signos da obra que sugerem um desenrolar real do dilema na figura.

Em resumo, este espaço oferecido pelo dispositivo à figura tem a conformação de situação, que envolve o dilema e o corpo/forma.

O DIÁLOGO ENTRE FORMA E ESPAÇO



O embate e atrito entre espaço e forma, que cobram autonomia de representação dentro do suporte, criando uma nova figura mais complexa e, em contrapartida, mais próxima de uma leitura visual do contexto.

O entorno antes privado da visualização se faz fortuitamente concreto e recorta o corpo – já que os dois elementos se fundem e por vezes são um só – reclamando no olhar a sua parcela.
É um ambiente que interrompe e fragmenta o corpo. Interrupções que são formas que o corpo interrompe.

As coisas se desenham no vazio, porque penso que caso se apresentassem como objetos conformados, ambos, figura humana e ambiente, perderiam sua força. Vejo na ausência, em qualquer de suas formas, a força do meu trabalho.

A figura ganhou expressão porque pretendo que o foco deixe de ser o corpo e passe a ser a sua interação com o todo.



“Como ver onde a luz não toca? Podemos apenas sondar o invisível com outros sentidos, tentando captar nuances que direcionem um rumo a seguir. Certezas e dúvidas convivem sem se tocar. E o revelado permanece no meio, inconcluso.” (Amanda Lopes, 2008)



“E a obra se revela em um mundo muito anterior ao sentido da realidade, pois antes de ser representada ela é interpretada, deixando nos desenho um foco secreto. Não sabemos o que é que produz esse foco. Não podemos fixar a hora em que o mistério se evidenciou para se anunciar como um problema.” (Miguel Gontijo, 2010)

SOBRE O HIPER-REAL

Considero ao mesmo tempo, solução técnica e forma de expressão mais eficaz para as intenções a que me proponho. Por mais que pareça contraditório, vejo o apuro técnico como forma de ir além da força expressiva da linha e alcançar elementos mais sutis. É o momento em que me vejo livre da intenção única de representar, mimetizar, para dar a perceber a busca de outras questões. Traçando um paralelo entre formas de linguagem, quanto mais domino a palavra, mais elaboradas são as verdades sobre as quais posso discursar ou convencer. É claro que este apuro técnico é um dos vieses e não o único pelo qual se pode comunicar, mas ao que me adapto melhor.

COROLÁRIO



Nesta breve reflexão, onde procurei fazer uma pesquisa de motivações íntimas e referências que impregnam meu trabalho, considero haver organizado muito da informação que todo esse processo produziu. Também pude ver que ainda é muito pouco e que, todavia tateio em vários cômodos escuros, trabalhando ainda intuitivamente com elementos que me são preciosos. O reconhecimento disto é importante e me oferece alguns nortes no que diz respeito à pesquisa.

Ainda há o que desvendar no diálogo entre figura e espaço, bem como em seus mecanismos de representação e significação. Reconhecer e refletir sobre isto se torna cada vez mais relevante para mim.

 

Sérgio Vaz

 

 

 

 

 

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